Baixe o material de estudo
Belford Roxo, Baixada Fluminense. O menino Keni Wilson, então com 9 ou 10 anos, já exibia as mãos manchadas de graxa, efeito do trabalho na oficina mecânica, onde encurtava a infância para ajudar o pai a levar algum dinheiro para casa. O lar desfeito em brigas, separação e mais brigas faz do garoto um errante entre as casas do pai e da avó. Antes mesmo da adolescência, ele sai de uma, depois volta, depois sai de novo… Nisso, a escola vai ficando para depois.
Vem todo tipo de bico: vendedor de sorvete, trabalho em rádio e gráfica, ajudante de pedreiro, montagem de gradil… Aos 16, a mãe tenta erguer uma casa no interior, mas, sem portas nem janelas, o material da construção desaparece. O filho decide: “Deixa que eu fico lá tomando conta.” E lá vai ele proteger com o corpo o pouco que havia.
O tempo corre. Em 2014, chega Karolina, aquela que será sua parceira de vida, e, com ela, Miguel, a quem Keni abraça como filho. Em 2017, nasce Alice. A rotina vai se repetindo: ônibus às 5h20, corte de mato no porto das 6 da manhã até a noite, volta para casa às 18h30, um banho rápido e meia horinha com as crianças, entre mamadeiras, dever e colo. Em seguida, enquanto o mundo inteiro se rende ao sofá, ele se rende à mesa de estudos. A janta vem pelas mãos da esposa, e ele come estudando. É assim por meses. É assim por anos.
A certa altura, a empresa exige o diploma do ensino médio; ele só tinha ido até o fundamental. Podia inventar desculpas, dizer que “não deu”, mas preferiu não brigar com o destino. Fez supletivo no semipresencial, e foi então que, vasculhando o YouTube em busca de aulas para assistir, que descobriu um mundo inteiramente novo, o dos concursos públicos. Percebeu que havia um caminho bem pavimentado mesmo para gente como ele, acostumado à terra batida.
Só que… estudar onde? No começo, no galinheiro da casa da mãe. Não é figura de linguagem, ele estudava no galinheiro mesmo, sentado numa cadeira simples à frente de uma mesa de plástico. O celular — única janela para as videoaulas — carregava na tomada improvisada enquanto as aves cochilavam nos poleiros. Mais tarde, ergueu um cubículo de madeira no quintal e montou um notebook de retalhos: carcaça de um, HD de outro, teclado torto de um terceiro…. Um projeto improvável que, surpreendentemente, funcionou. Ali, televisão com chuvisco servindo de tela e PDF aberto, mergulhou nos estudos de vez. O único pequeno conforto era um ventilador barulhento que ajudava com o calor.

Esta era a “base” de estudos de Keni, feita de gambiarras. O suficiente para ele sonhar.
No início, Karolina desconfiava — é que o mundo costuma rir de quem pensa grande… Quando ele passou no TRT, porém, o riso virou respeito. “Dá”, ela entendeu, e se tornou trincheira. Levava a janta, assumia as tarefas e lidava com o cansaço como podia, enquanto ele, os olhos ardendo, recorria a um chazinho de vez em quando para enganar o corpo. A cabeça insistia em desmaiar; o propósito não deixava.
Vieram os primeiros testes. Encarou o CREMERJ para “sentir o clima” e foi bem na objetiva, mas tropeçou na discursiva. Veio o TRT e, com ele, a primeira aprovação. Depois, o Ministério Público e uma prefeitura entraram na lista do “sim”. Mais tarde, a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro — edital que, no fundo, ele queria que fosse “o” edital. No caminho, ainda passou para a Caixa. Agradeceu, mas recusou: o coração já tinha dono.
A estrada foi tortuosa. Estudar depois de onze anos longe da escola não é nada fácil. Doía ainda mais porque o tempo com os filhos custava caro. O medo maior não era reprovar, era não virar exemplo. “Se eu falhar, eles vão acreditar que estudar não leva a nada.” Essa frase, que ecoava em sua mente noite após noite, o empurrava para a próxima aula, para a próxima bateria de questões, para a próxima revisão.

Num dado momento, Keni conectou as aulas na tevê, pois o computador já não funcionava direito.
Eis que chegou o 7 de janeiro de 2022, dia da tão aguardada posse no cargo dos sonhos. Devido às restrições da pandemia, os filhos não puderam entrar no auditório e assistiram pelo telão. Em casa, o abraço foi daqueles que religam o mundo. Na cabeça do agora técnico da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, passava um filme rápido, uma sobreposição de imagens: o galinheiro, a casinha de madeira, a tevê com chiado, o teclado capenga, o ônibus das 5h20, a mão de Karolina lhe passando o prato, as vezes em que ele adiou uma lista de exercícios para brincar de carrinho no chão da sala antes de voltar ao cubículo com ainda mais determinação.
Assumiu o novo posto com humildade que engrandece: aprender primeiro, servir sempre. Colegas como Ana Carla e Douglas acolheram, ensinaram, abriram portas. Defensores, idem. Faculdade de Direito? Viria no tempo certo. Antes, era preciso pôr a casa em ordem, literalmente. Em seis meses, o salário que parecia lenda já se transformava em chuveiro quente, fio passado, forro novo. Finalmente, chovia menos dentro de casa do que lá fora. E, talvez pela primeira vez, a palavra “perspectiva” saiu do dicionário e veio para o mundo dos fatos.
O mesmo Keni que por um tempo vivera numa casa sem portas para garantir que os sacos de cimento estivessem ali no dia seguinte hoje tem uma mesa de trabalho com computador e tudo mais funcionando. Para diminuir o calor, ar-condicionado em vez de um velho ventilador. O contracheque paga as contas, mas custeia algo ainda maior, a paz de espírito que só quem faz o mercado sem conta de cabeça conhece. Esse sossego para poder planejar é dignidade. E dignidade, na vida real, tem som de chuva batendo no lugar certo, cheiro de tinta fresca e sensação de água quente caindo sobre os ombros.

Keni no dia da posse, no meio da pandemia de covid.
Avançando alguns anos, vemos um Keni já no fim da graduação em Gestão Pública e aprovado no MPU, no terceiro lugar dentro das cotas, aguardando o resultado da discursiva.
Se você que lê estas linhas sente que sua vida é um corte de mato sem fim, com manhã virando noite e noite virando manhã, guarde o mapa de Wilson. Ele começou com o que tinha: celular, mesa de plástico e vontade. Muita vontade. Fez supletivo aos 32. Estudou onde dava e quando dava. Foi bem em algumas provas e mal em outras, mas aprendeu que é preciso insistir. Contou com o apoio de quem importava, a parceira Karolina, e fez ouvido de mercador a quem não agregava nada com seus comentários. Usou a internet como ponte, não como distração. Sobretudo, colocou o coração no lugar certo: por quem e por quê.
Não existe segredo. Existe generosidade, para escolher lutar até se tornar exemplo em casa. Existe disposição, para suportar galinheiros e cubículos de madeira como local de estudo e um notebook todo remendado como ferramenta. Existe constância, para insistir apesar do cansaço físico, mental e emocional. Existe método, para fazer valer o melhor de si e das circunstâncias. E existe ousadia para questionar a realidade.
Afinal, fracassa quem para. Quem persiste, chega. Sempre chega.

Keni e a esposa, Karolina, sua maior apoiadora.
Gabriel Granjeiro – CEO e sócio-fundador do Gran. Reitor e professor da Gran Faculdade. Acompanha de perto o universo dos concursos desde muito cedo. Ingressou nele, profissionalmente, aos 14 anos. Desde 2016, escreve artigos semanalmente para o blog do Gran. Formou-se em Administração e Marketing pela New York University Stern School of Business. Em 2021, foi incluído na prestigiada lista da Forbes Under 30. Autor de 4 livros que figuraram entre os best-seller da Amazon Kindle.
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Fonte: Gran Cursos Online