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O STJ afirma que embriaguez não afasta o dolo na injúria racial
A injúria racial continua sendo uma das faces mais dolorosas do racismo no Brasil. Recentemente, a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao julgar o Agravo em Recurso Especial nº 2.835.056-MG, deixou claro que a embriaguez voluntária e os ânimos exaltados não afastam o dolo específico exigido para a configuração do crime de injúria racial. Essa decisão reforça o compromisso da Corte com o enfrentamento do racismo em todas as suas formas.
O caso analisado envolvia um réu que, durante uma discussão acalorada, proferiu ofensas relacionadas à cor da pele da vítima. Em sua defesa, alegou estar embriagado e tomado por emoções intensas. A tentativa era a de convencer os tribunais de que essas condições o impediam de agir com dolo, ou seja, com a intenção de ofender. Mas o STJ entendeu de forma diferente.
O crime de injúria racial exige dolo direto: é necessário que o autor tenha a intenção de ofender a dignidade ou o decoro da vítima utilizando-se de elementos relacionados à raça, cor, etnia, ou procedência nacional. O réu, mesmo embriagado, sabia o que dizia — e o conteúdo de suas palavras era nitidamente dirigido a ferir a autoestima da vítima por sua cor.
A decisão do STJ reafirma o que já está previsto no Código Penal. De acordo com o artigo 28, inciso II, a embriaguez voluntária ou culposa, pelo álcool ou substância de efeitos análogos, não exclui a imputabilidade penal. Ou seja, quem bebe por vontade própria deve arcar com as consequências dos seus atos, inclusive quando pratica crimes.
Aliás, permitir que a embriaguez fosse utilizada como escudo para a prática de crimes raciais seria um grave retrocesso. Seria abrir uma brecha perigosa para que ofensas profundamente discriminatórias fossem justificadas por um estado voluntário de alteração da consciência.
O STJ também afastou outra tentativa de defesa recorrente nesses casos: a de que o agente estava com “ânimos exaltados”, motivado por discussões ou contextos conflituosos. O julgamento foi claro ao afirmar que emoções momentâneas não servem como justificativa para discursos de ódio.
A injúria racial, diferentemente do racismo, tem como foco a vítima individual, mas não deixa de atingir o coletivo. Ao ofender alguém por sua cor ou etnia, o autor reafirma estruturas históricas de exclusão. Por isso, o combate a esse tipo penal exige atenção redobrada do Judiciário.
O caso julgado também serve de alerta para a prática processual. Defensores, promotores e magistrados precisam compreender que, nos crimes de ódio, o dolo não se revela apenas em frases friamente calculadas. Muitas vezes, ele está nos impulsos conscientes, nas palavras escolhidas com o intuito de ferir aquilo que a vítima não pode mudar: sua identidade.
Mesmo no calor de uma briga, as palavras têm peso. E quando esse peso recai sobre o valor da pessoa enquanto ser humano, por sua cor de pele, a resposta penal precisa ser firme. O STJ reconheceu que o direito penal, nesse contexto, não pode vacilar.
Não se trata aqui de criminalizar a raiva, mas de separar o que é desentendimento comum daquilo que atravessa a linha da dignidade humana. A injúria racial não é apenas um xingamento: é uma tentativa de inferiorização com base em uma característica imutável.
A decisão também fortalece a percepção social de que o Judiciário está atento às formas modernas e sutis de racismo, muitas vezes disfarçadas sob a capa da “brincadeira”, da “confusão” ou da “bebedeira”. O recado é claro: palavras machucam — e quando carregadas de preconceito, são crimes.
Para a vítima, reconhecer que o agressor responderá por injúria racial mesmo embriagado é um passo importante para a reparação simbólica e jurídica. Significa dizer que o sofrimento causado é real e será levado a sério pelo Estado.
O precedente firmado pela 5ª Turma reforça, portanto, não só a tutela da dignidade individual, mas também a importância da responsabilidade pessoal diante de condutas racistas. Não há desculpa para o preconceito — nem no álcool, nem na raiva.
Em um país marcado por desigualdades raciais profundas, decisões como essa são fundamentais para romper o silêncio que ainda cerca muitas vítimas e para dar um sinal claro de que, mesmo em momentos de “ânimos exaltados”, o respeito à dignidade humana não pode ser negociado.
Autora: Carolina Carvalhal Leite. Mestranda em Direito Penal. Especialista em Direito Penal e Processo Penal; e, Especialista em Ordem Jurídica e Ministério Público. Graduada em Direito pelo UniCeub – Centro Universitário de Brasília em 2005. Docente nas disciplinas de Direito Penal, Processo Penal e Legislação Extravagante em cursos de pós-graduação, preparatórios para concursos e OAB (1ª e 2ª fases). Ex-servidora pública do Ministério Público Federal (Assessora-Chefe do Subprocurador-Geral da República na Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão – PFDC). Advogada inscrita na OAB/DF e OAB/SC.
Fonte: Gran Cursos Online