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Para a reprovação social, não basta que o autor do fato lesivo seja imputável e tenha possibilidade de lhe conhecer o caráter ilícito. Exige-se, ainda, que nas circunstâncias tivesse a possibilidade de atuar de acordo com o ordenamento jurídico. Explica Fernando de Almeida Pedroso:
“O cometimento de fato típico e antijurídico, por agente imputável que procedeu com dolo ou culpa, de nada vale em termos penais se dele não era exigível, nas circunstâncias em que atuou, comportamento diferente. Não se pode formular um juízo de censura ou reprovação, destarte, se do sujeito ativo era inviável requestar outra conduta”.
Nos termos do artigo 22 do Código penal, “Se o fato é cometido sob coação irresistível ou em estrita obediência a ordem, não manifestamente ilegal, de superior hierárquico, só é punível o autor da coação ou da ordem”. Se a pena é castigo, não se pode castigar quem agiu sem liberdade (em circunstâncias de anormalidade).
As figuras da coação irresistível e obediência hierárquica são excludentes desse elemento da culpabilidade.
1.1 Coação irresistível
A coação irresistível está prevista no artigo 22, 1ª parte, do Código Penal.
1.1.1 Requisitos da coação irresistível
São dois requisitos:
A) Coação moral: A coação a que se refere o dispositivo pode ser traduzida como ameaça, promessa de realizar um mal.
Apesar de o artigo 22, 1ª parte, do Código Penal, falar em “coação irresistível” entende a doutrina referir-se apenas à coação moral (vis compulsiva) e não à coação física (vis absoluta). Com efeito, na coação física, o coator coordena os movimentos do coagido e, quando irresistível, representa hipótese excludente da conduta, elemento do fato típico.
B) Irresistibilidade da coação: A coação deve também ser irresistível, assim compreendida aquela a que o coato (quem sofre a coação), oprimido pelo medo, não pode subtrair-se, mas apenas sucumbir ante a violência moral, realizando a conduta criminosa para satisfazer a vontade do autor da coação.
Como bem explica Flávio Monteiro de Barros:
“Para uns, a gravidade da ameaça é apurada em função do homem médio; para outros, o referencial é a condição pessoal do coagido. Cremos, em tal assunto, que nenhum desses critérios deve ser tomado em sentido absoluto. Efetivamente, o juiz deve decidir conforme o critério que mais se ajustar ao fato concreto, analisando sempre o valor dos bens jurídicos em conflito, as consequências advindas de uma ou outra opção, bem como o estado psicológico e demais particularidades do coagido, como sexo, idade, saúde, temperamento etc. É evidente que a ameaça de dano patrimonial não pode justificar a morte, ou lesão grave, de uma pessoa. Mas se os bens jurídicos são de igual valor, a opção do paciente de sacrificar o interesse alheio, satisfazendo o desejo do coator, não pode ser censurado pelo direito. Se, no entanto, o bem sacrificado é maior que o dano causado pela ameaça, subsiste a culpabilidade do coagido”.
O dispositivo ao se referir à coação irresistível está, evidentemente, excluindo a resistível. Naquela, o agente coagido não é passível de punição; nesta, não sendo suficiente para gerar circunstância de anormalidade, não impede a punição, mas a pena fica atenuada (artigo 65, III, “c”, 1a parte, do Código Penal).
Não se admite a coação irresistível da sociedade. “A sociedade não pode delinquir, pois onde ela existe, aí está também o Direito. Assim, a coação irresistível há que partir de uma pessoa, ou de um grupo, nunca da sociedade”.
Portanto, cai por terra a (absurda) alegação do marido traído no sentido de que assassinou o amante da sua esposa coagido pela sociedade, que o impelira de forma irresistível à prática do delito.
Tampouco se admite como dirimente o temor reverencial, que não traduz verdadeira coação, mas tão somente receio de desagradar a alguém por quem o agente nutre elevado respeito. Tanto é assim que o art. 153 do Código Civil, ao tratar da coação como causa de anulabilidade do negócio jurídico, exclui expressamente o temor reverencial da causa de invalidade. Ora, se nem mesmo na esfera civil é possível invocar o temor para anular o negócio celebrado, com maior razão há de se obstar qualquer efeito supressor da culpabilidade.
Na coação moral irresistível, a responsabilidade penal desloca-se da figura do coagido para a do coator (“só é punível o autor da coação”).
O coator responde pelo crime cometido pelo coato (na condição de autor mediato), em concurso material com o crime de tortura, decorrente do constrangimento a que foi submetido o coagido.
Na coação resistível, os dois personagens respondem pelo crime, o coator com a agravante do art. 62, II, do CP, e o coagido com a atenuante do art. 65, III, “c”, do CP.
Em resumo:
Se a coação for irresistível | Se a coação for resistível | |
Coator | Responde, como autor, pelo crime praticado pelo coagido + crime de tortura (art.1°, l, “b”, da Lei n° 9.455/97). | Responde, também, pelo crime praticado pelo coagido + agravante do art. 62, II, do CP. |
Coagido | Isento de pena por inexigibilidade de conduta diversa. | Responde pelo crime praticado + atenuante do art. 65, III, “c”, do CP. |
1.1.2 Obediência hierárquica
A segunda causa excludente da culpabilidade por inexigibilidade de conduta diversa é a obediência hierárquica, disciplinada no artigo 22, 2ª parte, do Código Penal.
É sabido que a ordem de um superior é emitida para ser cumprida, trazendo consigo a força da hierarquia institucional. Quando legal, não pode ser desobedecida, sob pena de responsabilidade do subalterno.
A ordem ilegal, por sua vez, não deve ser executada, não acarretando qualquer efeito para o subordinado que a descumpre (aliás, efeitos administrativos ou penais existirão se cumprir o mandamento). Há, entretanto, a ordem ilegal, mas com aparência de legalidade. O inferior hierárquico, ao executá-la, equivoca-se diante das aparências. É desta ordem que cuida o artigo em comento.
Explicam Juan Ferré Olivé, Miguel Nuñez Paz, William Terra de Oliveira e Alexis Couto de Brito:
“O comportamento criminoso realizado em cumprimento a uma ordem ilícita aparentemente legal é contrário ao direito (antijurídico) e, portanto, deve ser desaprovado. Destaque-se que possui natureza de agressão injusta, e aquele que sofre com seus efeitos poderia invocar a legítima defesa contra o que executa, sem saber, uma ordem ilegítima. Todavia, aquele que atua e foi instrumentalizado não merece pena porque, conforme as circunstâncias, não lhe era exigível uma conduta lícita alternativa.
Aquele que recebe a ordem encontra-se em um conflito, porque não pode saber se materialmente o que lhe ordenam é conforme o direito. O descumprimento de uma ordem formalmente concreta pode implicar em sanções, de natureza administrativa ou inclusive penal. Em síntese, a obediência hierárquica constrói-se como um caso específico de erro, no qual incorre o subordinado que atua equivocadamente pela aparência de legitimidade da ordem”.
Note que a dirimente em estudo nada mais é do que um misto de coação, gerada pela ordem de um superior, com o erro do subordinado, iludido pela aparência do mandamento (coação + erro).
São requisitos da obediência hierárquica:
A) Ordem de superior hierárquico: A ordem de superior hierárquico é a manifestação de vontade emanada de um detentor de função pública dirigida a um agente público hierarquicamente inferior, destinada à realização de uma ação ou abstenção.
A subordinação doméstica (pai e filho) ou eclesiástica (bispo e sacerdote) não configura a dirimente (podendo caracterizar causa supralegal de exclusão da culpabilidade).
B) Ordem não seja manifestamente (claramente) ilegal: A ordem recebida, apesar de ilegal, tem aparências de legalidade, induzindo o subordinado, que acaba por executá-la. Portanto, a ilicitude da ordem recebida não pode ser flagrante, clara e ululante, caso em que o executor não se exime de responsabilidade (sendo punido juntamente com o mandante, seu superior hierárquico). É claro que as circunstâncias do caso concreto vão ditar se a ordem era (ou não) manifestamente ilegal.
Fernando de Almeida Pedroso, lembrando as lições de penalistas clássicos, esclarece:
“Casos há, contudo, que requerem uma cautela maior, ou melhor, apuro na sua aferição, consoante as condições psicológicas do executor da ordem. Por esse motivo, enfatiza Aníbal Bruno, a expressão manifestamente ilegal, empregada pela Código ao insculpir a dirimente, deve ser entendida segundo as circunstâncias do fato e as condições de inteligência e cultura do subordinado. Ilustra Hungria a hipótese com o caso de um bisonho soldado de polícia que, por ordem do comandante da escolta, mata com um tiro de fuzil, supondo agir por obediência devida, o criminoso que se acha em fuga. Consequentemente, pondera Noronha, não só a ordem, mas também as circunstâncias atinentes ao executor-rusticidade, atraso, tempo de serviço…-tudo, em conjunto, há de ser apreciado no caso concreto”.
C) Estrita observância da ordem: O subordinado não pode exceder-se na execução do mandamento aparentemente legítimo, sob pena de responder pelo excesso.
Na obediência hierárquica, a responsabilidade penal desloca-se da figura do subordinado para a do superior (“só é punível o autor da ordem”), na condição de autor mediato.
Na ordem claramente ilegal, os dois personagens respondem pelo crime, podendo o subordinado ser beneficiado com a atenuante prevista no art. 65, III, “c”, do CP.
Quando se trata de ordem legítima, superior e subordinado cumprem dever legal. não havendo crime (art. 23, III, 1ª parte, do CP).
Em resumo:
OBEDIÊNCIA HIERÁRQUICA | |||
Se a ordem NÃO for manifestamente ilegal. | Se a ordem for manifestamente ilegal. | Se a ordem for legítima. | |
SUPERIOR | Responde, como autormediato, pelo crime pra-ticado pelo subordinado. | Responde pelo crime praticado pelo subordinado. | Não há crime(estrito cumprimento de um dever legal) |
A questão de existir ou não causa de exclusão da culpabilidade não prevista na legislação penal já foi muito discutida, hoje admitida pela doutrina (com respaldo em crescente jurisprudência). Percebeu-se, sem muita dificuldade, que, por mais previdente que seja o legislador, não consegue prever todos os casos em que é inexigível do agente conduta diversa, sendo perfeitamente possível, diante das circunstâncias do caso concreto, haver situações não antevistas pelo legislador.
As dirimentes supralegais se fundamentam, basicamente, no fato de que a exigibilidade de conduta diversa é característica fundamental da culpabilidade, motivo pelo qual não é admissível que se estabeleça a responsabilidade penal em decorrência de comportamentos humanos inevitáveis.
A inexigibilidade de conduta diversa aparece, portanto, como a válvula de escape para as dirimentes supralegais.
São exemplos de causas supralegais de exclusão da culpabilidade:
- Cláusula de consciência:
Nos termos da cláusula de consciência, estará isento de pena aquele que, por motivo de consciência ou crença, praticar algum fato previsto como crime, desde que não viole direitos fundamentais individuais. A doutrina costuma amparar a cláusula de consciência na liberdade de crença e de consciência assegurada constitucionalmente, nos termos do artigo 5°, VI da CF/88.
Exemplo: cita-se o caso do pai, testemunha de Jeová, que não permite a transfusão de sangue no filho. A questão, no entanto, merece atenção. Bem observam Luiz Flávio Gomes e Antônio Molina:
“É preciso distinguir as situações:
a) quando não há nenhuma lesão ao bem jurídico colocado em risco, em razão da intervenção de uma terceira pessoa, nenhuma responsabilidade penal subsiste. O pai não permite a transfusão de sangue no filho menor, mas o médico atua por conta própria e salva a criança. Ninguém responde penalmente nesse caso (…).
b) quando, de outro lado, o bem jurídico vida é lesado, o pai responde penalmente porque entre a liberdade de crença e a lesão ao bem jurídico vida ou integridade física, possuem maior valor estes últimos.
O médico, por seu turno, só responde por algo se omitiu socorro. Se tentou de toda a maneira salvar a vida da criança e não conseguiu, por nada responde”.
- Desobediência civil:
A desobediência civil representa atos de insubordinação que têm por finalidade transformar a ordem estabelecida, demonstrando a sua injustiça e necessidade de mudança. Exige-se para o reconhecimento desta dirimente: A) que a desobediência esteja fundada na proteção de direitos fundamentais; B) que o dano causado não seja relevante.
Exemplo: ocupações de prédios públicos; manifestações como a ocorrida na final da Copa do Mundo de 2018, em que algumas pessoas invadiram o campo para protestar contra o presidente russo e contra a falta de liberdade de expressão.
Mas as dirimentes supralegais devem ser invocadas com parcimônia, apenas em casos excepcionalíssimos, em que se demonstre cabalmente que em determinada situação não havia possibilidade de evitar a prática do ato ilícito. A inexigibilidade de conduta diversa jamais deve ser analisada sob prisma da saída mais fácil (comodidade). Não pode ser considerado inculpável o agente que, em uma situação crítica, tendo a opção de se desviar do ilícito, vai a seu encontro porque essa solução lhe parece mais simples.
A culpabilidade não é (e não deve ser tratada como) algo banal, a ser descartado ao menor sinal de fatores que não obstante tendam a abalar o livre arbítrio, não o eliminam.
Francisco de Assis Toledo trata a inexigibilidade de conduta diversa como a mais importante causa de exclusão da culpabilidade e como verdadeiro princípio de Direito Penal. Por isso mesmo deve ser analisada com a necessária cautela para evitar absolvições a esmo, baseadas em simples conjecturas que acabam resultando em tratamento benevolente a autores de condutas graves que poderiam muito bem ser evitadas, como de fato o são pela esmagadora maioria das pessoas. No mais, Assis Toledo chega à conclusão de que:
“não age culpavelmente – nem deve ser, portanto penalmente responsabilizado pelo fato – aquele que, no momento da ação ou da omissão, não poderia, nas circunstâncias, ter agido de outro modo, porque, dentro do que nos é comumente revelado pela humana experiência, não lhe era exigível comportamento diverso.”.
Destaque para a expressão utilizada pelo autor: “dentro do que nos é comumente revelado pela humana experiência”.
Ora, se há algo que a experiência humana nos revela é que, mesmo diante de dificuldades, a maioria das pessoas resiste a situações que lhes possam levar à prática de crimes.
A inexigibilidade de conduta diversa tem sido cada vez mais aventada na defesa de acusados da prática de determinados delitos. São recorrentes, por exemplo, pretensões de exclusão de culpabilidade no crime do art. 168-A do CP (apropriação indébita previdenciária) sob o argumento de que crises econômicas impossibilitam o repasse das contribuições previdenciárias descontadas dos funcionários. O tema tem sido tratado com rigor pela jurisprudência, que, com acerto, admite a dirimente apenas em situações de precária situação financeira:
“(..) 6. Não merece acolhida a tese de inexigibilidade de conduta diversa, em razão de dificuldades financeiras enfrentadas pela empresa, pois não restou comprovada a precária situação econômica da empresa à época dos fatos, sendo insuficiente a prova testemunhal e os documentos trazidos.(…)”.
Mas já se tem notícia de decisão absolutória em crime de tráfico de drogas porque o agente, servindo de transportador das substâncias, praticara a conduta em virtude de dificuldades financeiras por que passava sua família. Decisões dessa natureza, que aplicam a dirimente sem a necessária rigidez, devem ser desencorajadas. Não é preciso muito esforço para concluir que se trata de um imenso incentivo a práticas criminosas semelhantes, que podem ser cada vez mais intentadas diante da perspectiva de benevolência dos órgãos de justiça criminal. E criminosos são no geral movidos pela ousadia (alguém de caráter hesitante dificilmente concordaria em transportar drogas num voo internacional, nem tampouco participaria de um assalto a banco). Se não encontra limites, a ousadia tende a se exacerbar. E se hoje admitirmos, sob a falsa impressão de que o tráfico de drogas é um crime menos grave (porque normalmente não se lança mão de violência em suas operações finais), que traficantes sejam tratados com condescendência pela simples alegação de problemas financeiros, não poderemos nos espantar quando amanhã o mesmo caminho for tomado a favor de assaltantes violentos.
RESUMO
Elementos daculpabilidade | Dirimentes | Comentários |
Imputabilidade | -Anomalia psíquica (art.26, caput).-Menoridade (art. 27).-Embriaguez acidental (art.28, §1°). | -O rol de dirimentes da imputabilidade é taxativo.-O índio não é considerado inimputável, salvo se portador de anomalia psíquica,for menor de 18 anos ou apresentar embriaguez completa acidental. |
Potencial consciência da ilicitude | -Erro de proibição inevitável (art. 21). | -O rol também é taxativo. |
Exigibilidadede condutadiversa | -Coação moral irresistível;-Obediência hierárquica. | -Prevalece que as dirimentes da exigibilidade de conduta diversa estão dispostas num rol exemplificativo, admitindo-se causas supralegais (STJ) |
REFERÊNCIAS
Cunha, Rogério Sanches. Manual de Direito penal – Parte Geral – Volume Único. 13. ed. rev. atual. e ampl. – São Paulo: Editora JusPodivm, 2024.
Autora: Carolina Carvalhal Leite. Mestranda em Direito Penal. Especialista em Direito Penal e Processo Penal; e, Especialista em Ordem Jurídica e Ministério Público. Graduada em Direito pelo UniCeub – Centro Universitário de Brasília em 2005. Docente nas disciplinas de Direito Penal, Processo Penal e Legislação Extravagante em cursos de pós-graduação, preparatórios para concursos e OAB (1ª e 2ª fases). Ex-Servidora pública do Ministério Público Federal (Assessora-Chefe do Subprocurador-Geral da República na Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão – PFDC). Advogada inscrita na OAB/DF.
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Fonte: Gran Cursos Online