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1.1. Introdução
A Lei nº 13.344, de 6 de outubro de 2016, dispõe sobre o tráfico de pessoas, prevendo mecanismos de prevenção, repressão e proteção às vítimas.
O crime-base de tráfico de pessoas está tipificado no art. 149-A do Código Penal. Essa lei não substitui o tipo penal, mas estabelece políticas públicas, diretrizes e instrumentos para enfrentamento da prática criminosa.
Art. 149-A. Agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou acolher pessoa, mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso, com a finalidade de: (Incluído pela Lei nº 13.344, de 2016)
I – remover-lhe órgãos, tecidos ou partes do corpo;
II – submetê-la a trabalho em condições análogas à de escravo;
III – submetê-la a qualquer tipo de servidão;
IV – adoção ilegal; ou
V – exploração sexual.
1.2. Aspectos penais – Art. 149-A do Código Penal
Antes de entrarmos na lei propriamente dita, é importante recordar que o crime de tráfico de pessoas está tipificado no artigo 149-A do Código Penal. De forma resumida, esse artigo prevê que incorre nesse delito quem alicia, recruta, transporta, transfere, compra, aloja ou acolhe uma pessoa, utilizando-se de grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso, com determinados objetivos específicos. Entre esses objetivos, podemos citar: a remoção de órgãos, tecidos ou partes do corpo da vítima; a submissão a trabalho em condições análogas à de escravo; a colocação em qualquer tipo de servidão; a prática de adoção ilegal; ou ainda a exploração sexual.
1.2.1. Causas de aumento de pena
§ 1º A pena é aumentada de um terço até a metade se:
I – o crime for cometido por funcionário público no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las;
II – o crime for cometido contra criança, adolescente ou pessoa idosa ou com deficiência;
III – o agente se prevalecer de relações de parentesco, domésticas, de coabitação, de hospitalidade, de dependência econômica, de autoridade ou de superioridade hierárquica inerente ao exercício de emprego, cargo ou função; ou
IV – a vítima do tráfico de pessoas for retirada do território nacional.
A lei também prevê hipóteses que agravam a pena, aumentando-a de um terço até a metade. Isso ocorre, por exemplo, quando o crime é cometido por funcionário público, no exercício da função ou a pretexto de exercê-la; quando a vítima é criança, adolescente, pessoa idosa ou com deficiência; ou quando o autor se aproveita de relações de parentesco, domésticas, de coabitação, hospitalidade, dependência econômica, autoridade ou superioridade hierárquica. Além disso, se o tráfico for transnacional, ou seja, ultrapassar as fronteiras do país, também haverá aumento de pena.
Atenção! O tráfico internacional de pessoas não é tratado como crime autônomo, mas sim como causa de aumento no próprio artigo 149-A.
1.2.2. Causa de diminuição de pena
§ 2º A pena é reduzida de um a dois terços se o agente for primário e não integrar organização criminosa.
Há ainda uma hipótese de redução da pena, que pode variar de um a dois terços, quando o agente é primário e não integra organização criminosa.
Feita essa breve retomada do crime previsto no Código Penal, podemos agora entrar no conteúdo da Lei nº 13.344/2016, que não se limita a descrever o tipo penal, mas regula políticas públicas, medidas de prevenção e repressão, diretrizes para o enfrentamento do tráfico de pessoas e formas de proteção às vítimas.
1.3. Lei nº 13.344/2016
O artigo 1º da lei deixa claro que seu objeto é o enfrentamento ao tráfico de pessoas, tanto em território nacional quanto no exterior, quando a vítima for brasileira. A norma abrange, portanto, o tráfico interno e o internacional, que também é chamado de transnacional.
Importante reforçar que o tráfico transnacional, embora grave, não é considerado um crime autônomo, mas sim uma causa de aumento de pena do artigo 149-A do Código Penal.
Art. 1º Esta Lei dispõe sobre o tráfico de pessoas cometido no território nacional contra vítima brasileira ou estrangeira e no exterior contra vítima brasileira.
Parágrafo único. O enfrentamento ao tráfico de pessoas compreende a prevenção e a repressão desse delito, bem como a atenção às suas vítimas.
1.4. Princípios (Art. 2º)
Art. 2º O enfrentamento ao tráfico de pessoas atenderá aos seguintes princípios:
I – respeito à dignidade da pessoa humana;
II – promoção e garantia da cidadania e dos direitos humanos;
III – universalidade, indivisibilidade e interdependência;
IV – não discriminação por motivo de gênero, orientação sexual, origem étnica ou social, procedência, nacionalidade, atuação profissional, raça, religião, faixa etária, situação migratória ou outro status ;
V – transversalidade das dimensões de gênero, orientação sexual, origem étnica ou social, procedência, raça e faixa etária nas políticas públicas;
VI – atenção integral às vítimas diretas e indiretas, independentemente de nacionalidade e de colaboração em investigações ou processos judiciais;
VII – proteção integral da criança e do adolescente.
O artigo 2º apresenta os princípios que norteiam o enfrentamento ao tráfico de pessoas. Este ponto é frequentemente explorado em provas, porque estabelece a base ética e jurídica das ações estatais e das políticas públicas na área. São eles:
- Respeito à dignidade da pessoa humana – a prática atenta contra a liberdade, integridade física e mental da vítima.
- Promoção e garantia da cidadania e dos direitos humanos – proibição de deslocamentos forçados ou manutenção compulsória em território.
- Universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos – obrigação do Brasil em reprimir o tráfico, inclusive por meio de tratados internacionais.
- Não discriminação – por gênero, orientação sexual, etnia, nacionalidade, raça, religião, idade, situação migratória, atuação profissional ou outro status.
- Atenção integral às vítimas – brasileiras ou estrangeiras, colaboradoras ou não das investigações.
- Proteção integral à criança e ao adolescente – conforme ECA.
1.5. Diretrizes (Art. 3º)
O artigo 3º traz as diretrizes para o enfrentamento do tráfico de pessoas, estabelecendo objetivos claros para a atuação estatal. Entre eles, está o fortalecimento do pacto federativo, com atuação conjunta e articulada entre União, Estados e Municípios. Isso significa que a política de combate ao tráfico deve ser coordenada em todos os níveis de governo, envolvendo também organizações governamentais e não governamentais, nacionais e internacionais. Há um estímulo à participação da sociedade civil e de entidades de classe nas discussões e no controle social das políticas sobre tráfico de pessoas.
Outro objetivo é estruturar uma rede de enfrentamento ao tráfico, reunindo diferentes setores e atores sociais, e intensificar a atuação em áreas de maior incidência, como fronteiras, portos, aeroportos, rodovias e estações. A cooperação internacional também é destacada como medida essencial, tanto para investigações conjuntas quanto para a troca de informações. A lei ainda incentiva a realização de estudos e pesquisas para mapear o problema e orientar políticas públicas, além de prever a preservação do sigilo em procedimentos administrativos e judiciais relacionados ao tráfico.
1.6. Medidas de prevenção (Art. 4º)
Art. 4º A prevenção ao tráfico de pessoas dar-se-á por meio:
I – da implementação de medidas intersetoriais e integradas nas áreas de saúde, educação, trabalho, segurança pública, justiça, turismo, assistência social, desenvolvimento rural, esportes, comunicação, cultura e direitos humanos;
II – de campanhas socioeducativas e de conscientização, considerando as diferentes realidades e linguagens;
III – de incentivo à mobilização e à participação da sociedade civil; e
IV – de incentivo a projetos de prevenção ao tráfico de pessoas.
Esse artigo trata das medidas de prevenção, que devem ser implementadas por meio de ações integradas em diversas áreas, como saúde, educação, trabalho, segurança pública, justiça, turismo, assistência social, cultura, direitos humanos e outras. Campanhas socioeducativas e de conscientização são consideradas ferramentas fundamentais, devendo ser adaptadas às diferentes realidades e públicos.
Quer um exemplo? Campanhas voltadas a crianças e adolescentes devem ter linguagem mais simples e lúdica, enquanto campanhas para profissionais da saúde podem adotar uma abordagem mais técnica. A mobilização da sociedade civil e o incentivo a projetos de prevenção também fazem parte dessa política preventiva.
1.7. Medidas repressivas (Art. 5º)
Art. 5º A repressão ao tráfico de pessoas dar-se-á por meio:
I – da cooperação entre órgãos do sistema de justiça e segurança, nacionais e estrangeiros;
II – da integração de políticas e ações de repressão aos crimes correlatos e da responsabilização dos seus autores;
III – da formação de equipes conjuntas de investigação.
A repressão deve ocorrer por meio da cooperação entre órgãos do sistema de justiça e segurança, tanto no Brasil quanto no exterior. Essa repressão inclui a integração de políticas e ações para combater crimes correlatos, como exploração sexual de crianças e adolescentes ou tráfico de armas, e a responsabilização dos autores nas esferas penal, civil e administrativa. A lei também prevê a formação de equipes conjuntas de investigação, reunindo agentes de diferentes órgãos e até de diferentes países.
Vejamos um exemplo: A Polícia Federal recebe uma denúncia de que um grupo criminoso está trazendo mulheres estrangeiras para o Brasil com falsas promessas de emprego, mas, ao chegarem, elas são submetidas à exploração sexual em boates e casas noturnas.
Durante a investigação, descobre-se que o grupo atua também em outros países da América do Sul.
Para reprimir o crime, são adotadas as seguintes medidas:
- Cooperação internacional: a Polícia Federal aciona a Interpol e as autoridades do país de origem das vítimas para investigar a rede criminosa de forma conjunta.
- Equipes conjuntas de investigação: policiais brasileiros e estrangeiros trocam informações e realizam operações simultâneas nos dois países, prendendo suspeitos e apreendendo documentos.
- Responsabilização penal e administrativa: no Brasil, os acusados são denunciados pelo Ministério Público por tráfico de pessoas (art. 149-A do CP) e também por crimes correlatos, como favorecimento à prostituição. As casas noturnas envolvidas são fechadas e multadas pelos órgãos de fiscalização.
Nesse caso, a medida repressiva não se limita à prisão dos envolvidos, mas inclui cooperação internacional, integração entre órgãos de segurança e responsabilização dos autores, exatamente como prevê a lei.
1.8. Proteção e assistência às vítimas (Art. 6º)
Art. 6º A proteção e o atendimento à vítima direta ou indireta do tráfico de pessoas compreendem:
I – assistência jurídica, social, de trabalho e emprego e de saúde;
II – acolhimento e abrigo provisório;
III – atenção às suas necessidades específicas, especialmente em relação a questões de gênero, orientação sexual, origem étnica ou social, procedência, nacionalidade, raça, religião, faixa etária, situação migratória, atuação profissional, diversidade cultural, linguagem, laços sociais e familiares ou outro status ;
IV – preservação da intimidade e da identidade;
V – prevenção à revitimização no atendimento e nos procedimentos investigatórios e judiciais;
VI – atendimento humanizado;
VII – informação sobre procedimentos administrativos e judiciais.
§ 1º A atenção às vítimas dar-se-á com a interrupção da situação de exploração ou violência, a sua reinserção social, a garantia de facilitação do acesso à educação, à cultura, à formação profissional e ao trabalho e, no caso de crianças e adolescentes, a busca de sua reinserção familiar e comunitária.
§ 2º No exterior, a assistência imediata a vítimas brasileiras estará a cargo da rede consular brasileira e será prestada independentemente de sua situação migratória, ocupação ou outro status .
§ 3º A assistência à saúde prevista no inciso I deste artigo deve compreender os aspectos de recuperação física e psicológica da vítima.
No artigo 6º, o foco se volta à proteção e assistência às vítimas. Esse atendimento pode ser direto ou indireto e deve incluir assistência jurídica, social, de trabalho e emprego, além de cuidados de saúde física e mental. Muitas vezes, a vítima do tráfico perde completamente sua rede de apoio, não tendo sequer para onde ir.
Por isso, a lei prevê acolhimento e abrigo provisório, atenção às necessidades específicas (como gênero, idade, origem étnica, religião, nacionalidade), preservação da intimidade e identidade e prevenção da chamada revitimização, que ocorre quando a vítima é submetida repetidamente a procedimentos que a fazem reviver a experiência traumática, como prestar múltiplos depoimentos desnecessários.
O atendimento deve ser sempre humanizado e que a vítima seja informada sobre todos os procedimentos administrativos e judiciais que lhe digam respeito. Além disso, prevê a interrupção imediata da situação de exploração ou violência, bem como a reinserção social e comunitária da vítima, garantindo-lhe acesso à educação, cultura, formação profissional e trabalho. Quando se tratar de crianças ou adolescentes, deve-se buscar a reintegração familiar e comunitária. Para vítimas brasileiras no exterior, a assistência será prestada pela rede consular, independentemente da situação migratória, ocupação ou qualquer outro fator.
1.9. Disposições processuais (Art. 8º)
Art. 8º O juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público ou mediante representação do delegado de polícia, ouvido o Ministério Público, havendo indícios suficientes de infração penal, poderá decretar medidas assecuratórias relacionadas a bens, direitos ou valores pertencentes ao investigado ou acusado, ou existentes em nome de interpostas pessoas, que sejam instrumento, produto ou proveito do crime de tráfico de pessoas, procedendo-se na forma dos arts. 125 a 144-A do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal) .
§ 1º Proceder-se-á à alienação antecipada para preservação do valor dos bens sempre que estiverem sujeitos a qualquer grau de deterioração ou depreciação, ou quando houver dificuldade para sua manutenção.
§ 2º O juiz determinará a liberação total ou parcial dos bens, direitos e valores quando comprovada a licitude de sua origem, mantendo-se a constrição dos bens, direitos e valores necessários e suficientes à reparação dos danos e ao pagamento de prestações pecuniárias, multas e custas decorrentes da infração penal.
§ 3º Nenhum pedido de liberação será conhecido sem o comparecimento pessoal do acusado ou investigado, ou de interposta pessoa a que se refere o caput , podendo o juiz determinar a prática de atos necessários à conservação de bens, direitos ou valores, sem prejuízo do disposto no § 1º.
§ 4º Ao proferir a sentença de mérito, o juiz decidirá sobre o perdimento do produto, bem ou valor apreendido, sequestrado ou declarado indisponível.
Havendo indícios suficientes da prática do crime, o juiz poderá, de ofício, a pedido do Ministério Público ou por representação da autoridade policial (desde que o MP seja ouvido previamente), decretar medidas assecuratórias sobre bens, direitos ou valores do investigado, do acusado ou de terceiros, quando tais bens sejam instrumento, produto ou proveito do crime. Essas medidas incluem arresto, sequestro, hipoteca legal e alienação antecipada, sempre visando garantir a eficácia da persecução penal.
Na sentença, o juiz decidirá se os bens apreendidos serão perdidos em favor do Estado ou devolvidos ao legítimo proprietário, caso se comprove sua origem lícita. Nenhum pedido de liberação será apreciado sem o comparecimento pessoal do acusado, investigado ou terceiro que possuía o bem.
Vamos ver um exemplo de medida assecuratória?
A Polícia Federal investiga uma organização criminosa que recruta jovens no interior do Brasil com falsas promessas de emprego no exterior, mas, ao chegarem ao país de destino, as vítimas são submetidas à exploração sexual.
Durante a investigação, descobre-se que um dos líderes do grupo adquiriu um imóvel de alto valor e veículos de luxo, pagos em dinheiro, logo após algumas remessas de vítimas para fora do país. Há indícios de que esses bens foram comprados com os lucros obtidos com o tráfico de pessoas.
Com base no art. 8º, o delegado de polícia representa ao juiz para que sejam decretadas medidas assecuratórias. O Ministério Público é ouvido previamente e manifesta-se favoravelmente.
O juiz, então, determina o sequestro do imóvel; o arresto dos veículos de luxo e o bloqueio de valores em contas bancárias ligadas ao investigado.
Essas medidas têm o objetivo de impedir que os bens sejam vendidos ou ocultados antes do fim do processo e garantir futura indenização às vítimas e o possível perdimento em favor do Estado.
Ao final da ação penal, se ficar comprovado que os bens têm origem ilícita, o juiz decreta o perdimento. Caso se prove a origem lícita, autoriza-se a devolução ao proprietário.
Autora: Carolina Carvalhal Leite. Mestranda em Direito Penal. Especialista em Direito Penal e Processo Penal; e, Especialista em Ordem Jurídica e Ministério Público. Graduada em Direito pelo UniCeub – Centro Universitário de Brasília em 2005. Docente nas disciplinas de Direito Penal, Processo Penal e Legislação Extravagante em cursos de pós-graduação, preparatórios para concursos e OAB (1ª e 2ª fases). Ex-servidora pública do Ministério Público Federal (Assessora-Chefe do Subprocurador-Geral da República na Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão – PFDC). Advogada inscrita na OAB/DF e OAB/SC.
Fonte: Gran Cursos Online

